ABAIXO DO SOL, ACIMA DA TERRA

2023
Exposição individual, curadoria Paulo Henrique Silva. 
Galeria Antônio Sibasolly. Anápolis, Goiás.


O sagrado e o profano na obra de Valdson Ramos

Em sua segunda exposição individual, Valdson Ramos apresenta um conjunto de obras resultantes de sua atual pesquisa, iniciada em 2015, quando produziu os primeiros trabalhos da série "Ver Ícone", o que, por sua vez, retomava as investigações com a técnica de assemblage e seus desdobramentos. A instalação "Sem título, de 2012", que ilustra a identidade visual da exposição, composta por mãos de resina de poliéster e fitas religiosas da tradicional festa do Divino Pai Eterno de Trindade – GO, de fazer artesanal e moldadas em mãos de diferentes pessoas que percorreram em procissão a via dos romeiros rumo à festa do Divino – trajeto entre Goiânia e Trindade –, revela o interesse do artista em incorporar às suas narrativas poéticas questões estabelecidas entre o sagrado e o profano.

A narrativa poética que Valdson elabora em seus trabalhos é impregnada da iconografia religiosa, sobretudo católica, e seus desenhos feitos com água benta, vinho canônico e aquarela buscam traduzir o uso político da religiosidade como instrumento de opressão e manipulação. O conjunto de trabalhos escolhidos para integrar a mostra apresenta elementos iconográficos da igreja católica em um campo subjetivo, criando uma linha tênue entre a representação do sagrado e do profano. Além disso, abordam outras questões inerentes ao ser humano contemporâneo - que ultrapassam a obra de Valdson Ramos - e instigam o fruidor a refletir sobre a crise subjetiva da aquisição de bens materiais e valores espirituais.

A iconografia da Igreja Católica tem sido uma presença recorrente na arte ao longo dos séculos, e sua influência também se estende à arte contemporânea, abrangendo uma gama variada de temas, como eventos bíblicos, figuras divinas e, mais recentemente, até mesmo ações e posicionamentos dos cleros papais. Essa influência é frequentemente abordada de maneira crítica e subversiva, explorando questões sociais, políticas e culturais, bem como questionando a autoridade e os dogmas instituídos pela Igreja ao longo da história.

Em uma perspectiva própria e sutil, Valdson lança mão de elementos iconográficos cristãos, assim como signos terrenos. Apesar do figurativismo presente nos trabalhos, ele incorpora em seu repertório imagético, desde o material utilizado para a produção, como a água benta e o vinho canônico, representações provocativas sobre a natureza da fé, da materialidade e do sagrado, construindo narrativas para além de questões regionalistas. 

“Abaixo do sol, acima da terra” aponta para o lugar onde o sagrado e o profano se entrelaçam: o mundo físico, palco das experiências humanas, sujeitas às leis naturais, aos ciclos e às vivências comuns da humanidade. É abaixo do sol e acima da terra que nascemos, crescemos, sonhamos e enfrentamos nossos medos. Seja por meio dos trabalhos que têm a rocha como elemento central e referência alusiva à pedra angular, ou obras que remetem a passagens bíblicas e elementos iconográficos que estabelecem possíveis relações entre o espiritual e o material, Ramos nos convida a ver o sagrado e o profano não como esferas mutuamente exclusivas, mas, sim, como coexistentes em um mesmo lugar, com suas contradições e complexidades.

A exposição apresenta trabalhos das séries "Ver Ícone", "Rogai por Nós" e "Sem Título", além da instalação "Pedras Molhadas no Vinho" e os trabalhos "Você Primeiro" e "Conhecereis a Verdade", premiados no 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás, realizado em 2022, no Museu de Arte Contemporânea de Goiás - MAC, Goiânia/GO.

Na "Série Ver Ícone", o artista lança mão de narrativas criadas a partir de imagens que remetem ao Santo Sudário, tecido de linho que, segundo a Igreja Católica, teria sido usado para enxugar o rosto de Cristo e, supostamente, utilizado para cobrir seu corpo após a crucificação. Independentemente da veracidade histórica, é considerado pelos fiéis um dos maiores símbolos da iconografia cristã. Assim como retratado ao longo da história da arte por diversos artistas, com camadas pictóricas suaves, mas claramente visíveis as formas do rosto de Cristo encobertas, Ramos produz trabalhos que ressignificam a utilização da imagem do objeto, tecido. Ora encobrindo com um tecido de linho branco artefatos como uma réplica da coroa de espinhos utilizada na crucificação de Cristo, resultando em imagens que criam uma relação de velar e desvelar de sua verdadeira forma, ora representando uma sequência de tecidos que se partem ao meio, tencionados por cordas de sisal, insinuando uma possível ruptura de conceitos cristalizados no imaginário coletivo.

 Nos trabalhos da "Série Rogai por Nós", o artista problematiza questões como a veneração cega, a instrumentalização da religião para fins políticos ou comerciais e a produção de imagens sacras em uma escala industrial. Apesar das técnicas de produção terem se desenvolvido muito ao longo do tempo, a confecção das imagens ainda segue processos semelhantes aos de séculos atrás. As estátuas, produzidas em sua maior parte em gesso, são feitas a partir de uma mesma forma, diferenciando-se apenas pelas vestes e ornamentos.

Ao cobrir parcialmente ou quase totalmente as imagens de santos e santas para registro e produção das obras, Ramos questiona o sistema industrial em que o objeto sagrado perde sua representatividade e individualidade, além de ser comercializado ou utilizado como símbolo de poder. Os trabalhos da série instigam a refletir sobre o papel das imagens sacras na sociedade atual, gerando questionamentos sobre a relevância das representações religiosas, sobre como são vistas e interpretadas na contemporaneidade.

Também faz parte da série a instalação "Pedras Molhadas no Vinho". O trabalho, composto por vídeo, tecido de linho, cordas de sisal e pedras molhadas em vinho, com dimensões variáveis, remonta a uma performance realizada pelo artista e colaboradores em um barranco de uma área destinada à extração de argila para cerâmica, em um bairro periférico de Anápolis. A presença das cordas de sisal e dos mastros de madeira utilizados como estrutura para esticar o tecido, como uma espécie de estandarte, durante a gravação do vídeo garantiu a disposição adequada do tecido para o arremesso das pedras após serem submersas no vinho, além de remeter a elementos de conexão e ancoragem. A instabilidade aparente existente nos mastros de madeira fincados sobre a superfície argilosa sugere reflexões acerca de questões estruturais existentes nas regiões periféricas, onde as minorias, em seu dia a dia, são metaforicamente apedrejadas.

A série "Sem Título", composta por seis trabalhos com imagens de moedas e medalhas, reafirma a pesquisa poética do artista sobre possíveis relações estabelecidas entre o poder, a exploração e a influência religiosa. Peças cobiçadas por colecionadores e numismatas devido ao valor histórico e econômico, representam o acúmulo de riqueza e de controle financeiro. A representação de imagens sacras em medalhas da Igreja Católica ao longo da história evidencia não só a valorização da fé, mas também o valor político e econômico do objeto dentro do próprio contexto religioso.

Completam a exposição as obras "Você Primeiro", instalação composta por desenhos e rochas de quartzito micáceo, e "Conhecereis a Verdade", objetos - rochas de quartzito micáceo, resina de poliéster e tinta. Em ambos, Ramos utiliza pedaços de rochas coletados às margens do Rio das Almas, em Pirenópolis, GO. Essa cidade histórica foi marcada pela atividade de extração de minérios e explorada por suas riquezas minerais, como o ouro e a prata.

Em "Você Primeiro", Valdson dá continuidade à pesquisa com pedras iniciada na produção do trabalho "Pedras Molhadas no Vinho". No entanto, diferentemente dessa obra, em que as pedras são empunhadas nas mãos e lançadas, remontando praticamente a uma cena de apedrejamento, Ramos busca nos fragmentos do minério o conceito de valor monetário, de riqueza. A obra propõe possíveis relações e reflexões sobre a violência colonial presente nas relações sociais estabelecidas durante o período da extração de minérios, especialmente a mão de obra escrava.

"Conhecereis a verdade" apresenta-se como uma obra intrigante no conjunto de trabalhos que compõem a mostra, incitando reflexões sobre história, estética e identidade. Composta por dois objetos de grandes semelhanças, aparentemente iguais, o trabalho conduz o fruidor a um exercício sistêmico e analítico de tentar descobrir o porquê de duas rochas iguais estarem lado a lado. Apropriando-se da frase bíblica "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" para dar título à obra, Ramos nos convida a refletir sobre a desnaturalização das narrativas coloniais e a complexidade de construir uma identidade cultural autêntica em meio a um contexto histórico marcado por invasões, exploração e mitos.

Paulo Henrique Silva
Curador da mostra
Anápolis, junho de 2023